QUANDO O ZIGUEZAGUE PROVOCA TORCICOLOS

Rafael Marques, activista dos direitos humanos, denunciou hoje, num fórum em Washington, o que o Folha 8 (entre outros) tem denunciado por diversas vezes. Ou seja, que o Judiciário “tornou-se um epicentro da corrupção” em Angola e acusou o Presidente, João Lourenço (de quem recebeu uma condecoração), de retaliar politicamente contra inimigos pessoais.

No Fórum da Sociedade Civil, um evento integrado na Cimeira Estados Unidos da América (EUA)-África, Rafael Marques teceu duras críticas ao sistema “de patrocínio e recompensa” existente em Angola, “que promove a corrupção”.

Dando como exemplo a escala de salários e benefícios do sector público angolano, o activista indicou tratar-se de “um mecanismo interno e institucional para a produção em massa de ladrões de cima para baixo”.

Virando as atenções para o sistema judiciário do país, o responsável pelo blogue Maka Angola defendeu não existir separação de poderes. “Portanto, o Judiciário não é independente”, avaliou.

“Apesar das crescentes evidências de corrupção, a decisão sobre se os casos serão arquivados, paralisados ou levados a audiência nos tribunais continua a ser uma decisão política. Os poderosos e bem relacionados continuam a desfrutar da impunidade. Não há mudança palpável, portanto, não há justiça”, advogou.

No seu pronunciamento no Fórum da Sociedade Civil, o activista afirmou que o Governo de João Lourenço financia casas e apartamentos multimilionários como gratificação para os juízes dos tribunais superiores e referiu ainda o decreto presidencial 69/21, que “autoriza a Procuradoria-Geral da República e os Tribunais a dividirem entre si 10% de todos os bens recuperados – uma ‘recompensa’ pela penhora judicial que equivale a um conflito de interesses” e que “desafia a obrigação constitucional de imparcialidade judicial”.

“Tragicamente, (…) o Judiciário angolano tornou-se um epicentro da corrupção, abertamente encorajada pela administração de João Lourenço”, disse Rafael Marques.

O activista acusou ainda o Presidente do MPLA, João Lourenço, bem como o Presidente da República, João Lourenço, assim como o Titular do Poder Executivo, João Lourenço, de usarem o sistema judicial para aplicar represálias políticas contra os seus inimigos pessoais, “principalmente os familiares e associados mais próximos do seu antecessor”, José Eduardo dos Santos.

“A aplicação desigual da justiça dá toda a aparência de protecção para alguns dos funcionários públicos mais notoriamente corruptos, em troca da sua lealdade”, acrescentou.

O activista, que chegou a ser condenado a pena de prisão por acusações contra José Eduardo dos Santos, concluiu o seu pronunciamento com uma frase do ex-presidente dos EUA Barack Obama, dita no Gana em 2009: “A África não precisa de homens fortes, precisa de instituições fortes”.

A Cimeira EUA-África, que decorre na capital norte-americana até quinta-feira, contará com a presença de dezenas de chefes de Estados africanos, incluindo o de Angola, João Lourenço, que terá uma intensa agenda, como “reuniões de trabalho e audiências a empresários e altas figuras da Administração norte-americana, como é o caso de Antony Blinken, secretário de Estado”, segundo fontes oficiais.

A cimeira deve reavivar as relações dos Estados Unidos com o continente africano, colocada em suspenso pelo ex-presidente Donald Trump, num momento em que China e Rússia avançam com os seus peões na região.

Este é o segundo encontro do género, depois de uma primeira edição realizada em 2014. No total, 49 chefes de Estado africanos e o presidente da Comissão da União Africana, Moussa Faki Mahamat, foram convidados para este encontro de alto nível.

Separação de poderes? O que é isso?

A propósito da separação de poderes em Angola, e como se já não bastasse termos governantes, políticos e generais a querer entrar para o anedotário mundial, recorde-se que o presidente do Tribunal Supremo de Angola, Manuel Aragão, também apresentou a sua candidatura no dia 3 de Março de 2017.

Vejamos a anedota: “Há uma efectiva separação de poderes no país, entre poder político e os tribunais”.

“Os que dizem que não existe, cabe a eles provarem. Se calhar não estão em condições de nos dar lições, a julgar pelos exemplos”, apontou Manuel Aragão, em declarações aos jornalistas à margem da cerimónia de abertura do Ano Judicial 2017.

Insistindo na efectiva separação de poderes em Angola, o então presidente do Tribunal Supremo angolano recordou: “Somos todos representantes de um poder único, que é o Estado. A soberania é do povo”.

A reacção do então Presidente do Tribunal Supremo (escolhido por José Eduardo dos Santos), sem destinatário especificado na declaração, surgiu no entanto uma semana depois de a diplomacia angolana ter criticado fortemente as autoridades portugueses, pela forma “inamistosa e despropositada” como foi divulgada a acusação de corrupção do Ministério Público a Manuel Vicente.

Certamente que este esclarecimento de Manuel Aragão não se destinou aos países mais democráticos do mundo com os quais o regime do MPLA se identifica na plenitude, como são os casos da Guiné Equatorial e da Coreia do Norte.

Aliás, que melhor prova o mundo pode querer da separação de poderes quando, em Angola, o Presidente da República escolhe o Vice-Presidente, todos os juízes do Tribunal Constitucional, todos os juízes do Supremo Tribunal, todos os juízes do Tribunal de Contas, o Procurador-Geral da Republica e o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas?

Numa nota do Ministério das Relações Exteriores de 24 de Fevereiro de 2017, o Governo angolano protestou veementemente contra as acusações, “cujo aproveitamento tem sido feito por forças interessadas em perturbar ou mesmo destruir as relações amistosas existentes entre os dois Estados”.

Timidamente o Governo português limitou-se a, oficialmente, recordar o “princípio da separação de poderes” que (+ ou -) vigora em Portugal, onde as autoridades judiciárias actuam com “total independência” face ao executivo.

No documento do ministério angolano, refere-se que as autoridades angolanas tomaram conhecimento “com bastante preocupação, através dos órgãos de comunicação social portugueses”, da acusação do Ministério Público português “por supostos factos criminais imputados ao senhor engenheiro Manuel Vicente”.

Para o Governo de Luanda, a forma (pelos vistos o conteúdo é o que menos importa) como foi veiculada a notícia constitui um “sério ataque à República de Angola, susceptível de perturbar as relações existentes entre os dois Estados”.

“Não deixa de ser evidente que, sempre que estas relações estabilizam e alcançam novos patamares, se criem pseudo factos prejudiciais aos verdadeiros interesses dos dois países, atingindo a soberania de Angola ou altas entidades do país por calúnia ou difamação”, sublinhava a nota da diplomacia angolana.

Eis, na íntegra, o comunicado divulgado no dia 5 de Janeiro de 2020 pela Casa Civil do Presidente da República após o encontro de João Lourenço com Félix Tshisekedi (Presidente da República Democrática), em Benguela, onde os chefes de Estado aproveitaram a ocasião para falar sobre o combate à corrupção e analisar as consequências da decisão do Tribunal Provincial de Luanda, de 30 de Dezembro de 2019, que impôs o arresto de contas bancárias pessoais da filha do antigo Presidente de Angola e do seu marido, Sindika Dokolo, bem como de nove empresas nas quais a empresária detém participações.

«1. O Chefe de Estado de Angola, Sua Excelência João Manuel Gonçalves Lourenço, e o Chefe de Estado da República Democrática do Congo, Sua Excelência Félix Antoine Tshisekedi Tshilombo, mantiveram hoje, 5 de Janeiro de 2020, um encontro na cidade de Benguela.

2. Durante o encontro, que se enquadra no âmbito das relações de amizade, cooperação e boa vizinhança, os Chefes de Estado abordaram o dossier da ZIC (Zona de Interesse Comum) de exploração petrolífera.

3. Nesse sentido, acordaram que equipas técnicas dos dois países vão reunir-se o mais brevemente possível para estabelecerem o cronograma de acções necessário para a implementação do Projecto Conjunto.

4. Os Chefes de Estado aproveitaram também a ocasião para analisar as consequências da decisão do Tribunal Provincial de Luanda, de 30 de Dezembro de 2019.

5. Sobre a matéria de combate à corrupção e à impunidade, os Chefes de Estado consideraram ter havido grande magnanimidade da parte do Estado angolano ao estabelecer um período de graça de seis meses no âmbito da Lei n.º 9/18 de 26 de Junho, sobre Repatriamento de Recursos Financeiros, oportunidade não aproveitada no devido tempo.

6. Consideraram ainda que passado um ano após o fim desse período de graça, o Estado angolano, na defesa dos interesses dos lesados, os angolanos, tem toda a legitimidade de accionar os meios legais, judiciais, diplomáticos e outros que julgar necessários, a fim de garantir o efectivo repatriamento dos capitais colocados ilicitamente fora do País, e providenciar a recuperação de bens em território nacional, ao abrigo da Lei n.º 15/18 de 26 de Dezembro, sobre Perda Alargada de Bens e Repatriamento Coercivo de Capitais

7. Realçaram que o melhor caminho para os visados será a máxima colaboração com as autoridades competentes do Estado e com a Justiça angolana, e neste contexto, o Chefe de Estado angolano apelou à cooperação internacional no sentido de apoiar o esforço de combate a corrupção e à impunidade em Angola.

8. Chefe de Estado angolano enfatizou o respeito ao princípio da observância da separação de poderes, e assegurou que o Executivo não interfere na acção da Justiça.

9. Os Chefes de Estado engajaram-se a prosseguir os processos de transição política nos respectivos países de forma pacífica e harmoniosa, no interesse dos dois povos.

10. Sua Excelência o Presidente Félix Tshisekedi agradeceu ao seu homólogo a pronta disponibilidade de O receber para esta diligência.»

Folha 8 com Lusa

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